RIO - Na manhã de quarta-feira da semana passada, Jorge Mario Jáuregui viajou, pela primeira vez, no teleférico do Complexo do Alemão. Ao esbarrar, na Estação Adeus, com um grupo de adolescentes, não resistiu e fez a abordagem: "Já andaram no teleférico?" Mostrou-se satisfeito quando elas disseram que tinham aprovado o novo transporte. Durante o trajeto, quando, incidentalmente, o veículo ficou parado por alguns minutos, entre as estações Itararé e Palmeiras, tentou justificar o calor que fazia. "Em movimento, o sistema de ventilação funciona bem. Parado, porém, o calor é infernal. Era preciso ter ar-condicionado, mas faltou dinheiro."
Flamenguista e mangueirenseNo caminho, conversa com uma família do Catete que foi conhecer a obra, reconhece uma equipe da televisão coreana que faz reportagem no local, aponta decepcionado para um espaço vazio e reclama: "Ali estava projetado um café..." No ponto final, na Fazendinha - ele insiste em chamar a estação de Fazendinha, como é conhecida a região, embora o painel indique o batismo oficial de Estação Palmeiras -, estranha a música ambiente. Ao fundo, toca um folk americano, música típica de qualquer metrô do mundo ou de elevadores de prédios comerciais. "A música deveria ser mais localista", conclui, revelando que o português não é sua primeira língua. Por exemplo? "Marcelo D2", responde rápido.
Jáuregui (o sobrenome é de origem basca) não é um passageiro qualquer. Naquela quarta-feira, o teleférico transportava o arquiteto que o projetou. É ele o autor do veículo que, ao lado de conjuntos habitacionais, praças e, principalmente, a presença do Exército antecipando a instalação de mais uma das Unidades de Polícia Pacificadora da cidade, está mudando a vida dos 80 mil moradores do Alemão.
O teleférico é apenas a mais vistosa das intervenções que Jáuregui tem feito na paisagem da cidade desde que, há 30 anos, ao lado da mulher e do primeiro filho (o segundo já nasceu aqui) fugiu da ditadura militar argentina (ele nasceu em Rosario) em direção ao Rio. É tempo suficiente para ele afirmar com orgulho:
- Torço pelo Flamengo e pela Mangueira. Ganhei meu direito de cidadania carioca. O Rio é um grande laboratório, e tenho o privilégio de habitar nesta cidade. Habitar, no sentido heideggeriano, no meio da natureza.
A citação a Heidegger mostra uma faceta peculiar de Jáuregui: seu interesse por filosofia é quase tão grande quanto o que nutre pela arquitetura.
Ele olha descrente para Botafogo, o bairro em que mantém seu escritório, o Metropolis Projetos Urbanos (MPO):
- Desde que estou lá, há dez anos, Botafogo só vem sendo destruído. Não tem um só edifício de qualidade.
E olha com humor para a Urca, o bairro onde mora desde que chegou à cidade.
- Sou conhecido no exterior como "o arquiteto das favelas" e moro no único bairro da cidade que não tem uma única favela.
Morro do Fubá e Rio das PedrasO epíteto vem de seu trabalho no Favela Bairro, que acabou lhe valendo, na década passada, uma exposição de seus projetos no Museu de Arte Moderna de Nova York e o prestigioso prêmio Veronica Rudge Green para Design Urbano, da universidade americana de Harvard. Jáuregui foi o único sul-americano a receber o prêmio que já foi entregue a arquitetos de destaque como o português Álvaro Siza Vieira.
Na primeira fase do Favela-Bairro, ainda nos anos 90, ele projetou mudanças no Vidigal, na Fernão Cardim, no Morro do Fubá e na Rio das Pedras.
- Foram os melhores anos do Favela Bairro - avalia. - Eu e toda uma geração de arquitetos aprendemos muito. Descobri que a favela era um campo de pensamento.
Muito desse pensamento, Jáuregui aplicou no projeto que deve ser entregue à cidade até o fim do ano: a rambla de Manguinhos. Ele chama de rambla porque não esconde a inspiração nas ramblas de Barcelona. Mas, brasileiramente, poderia ser batizado de calçadão de Manguinhos, uma intervenção que pretende terminar com a má fama de uma região, que foi apelidada pela crônica policial de "faixa de Gaza".
O Complexo de Manguinhos tem suas favelas divididas pelo muro que margeia a linha férrea do ramal de Saracuruna da SuperVia. O muro é a "faixa de Gaza", que divide as facções criminosas dos dois lados do Complexo. Pois o projeto de Jáuregui derruba o muro, eleva a linha férrea, e, no espaço sob o novo elevado, cria um enorme calçadão (ou rambla) arborizado que une a Estação Manguinhos, reformada, ao que está sendo chamado de Centro Cívico, uma série de equipamentos, a maioria utilizando armazéns desativados, que já vem dando vida nova à comunidade, como uma biblioteca, uma escola profissionalizante, o Centro de Geração de Trabalho e Renda, um centro de apoio jurídico... No papel, é um espetáculo!
O arquiteto cita outro filósofo para definir seu trabalho:
- Para Henri Lefebvre, a cidade é a projeção social da sociedade sobre o terreno. Hoje, a função social de um arquiteto urbanista é prestar serviço ao cliente pensando no conjunto - na casa, no edifício, no bairro, na cidade. A função do arquiteto é articular diferenças. Ele é um fazedor de conexões.
Não há melhor lugar para "articular diferenças" do que numa favela. Jáuregui gosta do apelido que ganhou.
- Me dá muito prazer ser o arquiteto das favelas. Hoje em dia, é um privilégio. E não tem nada a ver com desenhar favelas. Tem a ver com pensar o formal e o informal.
Jáuregui busca outro de seus interesses, a psicanálise, para entender o que faz:
- A psicanálise acrescentou à minha prática arquitetônica a escuta da demanda. Mas não para respondê-la, e, sim, para interpretá-la. Isso vale tanto com o cliente individual quanto com a favela. Especialmente com a favela.
Limitar o trabalho de Jáuregui a seus projetos em favelas não corresponde à sua ação na cidade. Ele esteve, por exemplo, entre os arquitetos que renovaram a cara da Zona Sul com o Rio Cidade. Foi responsável pelas mudanças no Catete.
- Estou decepcionado com a não manutenção do que se fez - lamenta, lembrando que não estão mais lá as árvores que foram plantadas para dar mais cor ao bairro.
No passeio ao Morro do Alemão, o arquiteto passou por um conjunto habitacional, daqueles que eram feitos pelo BNH na década de 70, e não escondeu suas críticas:
- São depósito de gente.
Terapia da varandaA visão o fez recordar a fonte de inspiração dos conjuntos residenciais que criou para o Alemão e Manguinhos. Na primeira inauguração do teleférico - já houve duas, mas o sistema continua funcionando em fase experimental -, o presidente Lula conheceu o protótipo das residências que seriam construídas ali. Era um sobradinho, com sala e cozinha no térreo, e dois quartos e banheiro em cima. Um dos quartos, tinha uma varanda. Lula saiu do protótipo elogiando a varanda, que serviria como refúgio para o trabalhador que chega em casa cansado e já ouve bronca "da patroa". Na varanda, ele fumaria um cigarrinho, olharia a paisagem, esfriaria a cabeça, ficando pronto para voltar e resolver todos os problemas domésticos.
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